A Era da Guerra Total

10-03-2011 15:21

HOBSBAWM, Eric J., 1917.

Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991

Tradução: Marcos Santarrita

Revisão Técnica: Maria Célia Paoli

São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

 

 

PARTE UM: A ERA DA CATÁSTROFE

 

A ERA DA GUERRA TOTAL

Filas de rostos pálidos murmurando, máscaras de medo,

Eles deixam as trincheiras, subindo pela borda,

Enquanto o tempo bate vazio e apressado nos pulsos,

E a esperança, de olhos furtivos e punhos cerrados,

Naufraga na lama. Ó Jesus, fazei com que isso acabe!

Siegfried Sassoon (1947, p. 71)

Talvez se ache melhor, em vista das alegações de "barbaridade" dos ataques aéreos, manter as aparências com a formulação de regras mais brandas e também limitando-se nominalmente o bombardeio a alvos de caráter estritamente militar [...] para evitar enfatizar a verdade de que a guerra aérea tornou tais restrições obsoletas e impossíveis. Talvez se passe algum tempo até que ocorra outra guerra e enquanto isso o público pode ser educado quanto ao significado da guerra aérea.

Rules as to bombardment by aircraft, 1921 (Townsend, 1986, p. 161)

(Sarajevo, 1946) Aqui, como em Belgrado, vejo nas ruas um considerável número de moças cujos cabelos estão ficando grisalhos, ou já o estão completamente. Têm os rostos atormentados mas ainda jovens, enquanto as formas dos corpos traem ainda mais claramente sua juventude. Parece-me ver como a mão desta última guerra passou pelas cabeças desses seres frágeis [...] Tal visão não pode ser preservada para o futuro; essas cabeças logo se tomarão mais grisalhas ainda e desaparecerão. E uma pena. Nada poderia falar tão claramente sobre nossa época às futuras gerações quanto essas jovens cabeças grisalhas, das quais se roubou a despreocupação da juventude.

Que pelo menos tenham um memorial nesta notinha.

Signs by the roadside (Andric, 1992, p. 50)

 

I

 “As luzes se apagam em toda a Europa”, disse Edward Grey, secretário das Relações Exteriores da Grã-Bretanha, observando as luzes de Whitehall na noite em que a Grã-Bretanha e a Alemanha foram à guerra. "Não voltaremos a vê-las acender-se em nosso tempo de ida." Em Viena, o grande satirista Karl Kraus preparava-se para documentar e denunciar essa guerra num extraordinário drama-reportagem a que deu o título de Os últimos dias da humanidade. Ambos viam a guerra mundial como o fim de um mundo, e não foram os únicos. Não foi o fim da humanidade, embora houvesse momentos, no curso dos 31 anos de conflito mundial, entre a declaração de guerra austríaca à Sérvia, a 28 de julho de 1914, e a rendição incondicional do Japão, a 14 de agosto de 1945 quatro dias após a explosão da primeira bomba nuclear, em que o fim de considerável proporção da raça humana não pareceu muito distante. Sem dúvida houve momentos em que talvez fosse de esperar-se que o deus ou os deuses que os humanos pios acreditavam ter criado o mundo e tudo o que nele existe estivessem arrependidos de havê-lo feito.

A humanidade sobreviveu. Contudo, o grande edifício da civilização do século 20 desmoronou nas chamas da guerra mundial, quando suas colunas ruíram. Não há como compreender o Breve Século XX sem ela. Ele foi marcado pela guerra. Viveu e pensou em termos de guerra mundial, mesmo quando os canhões se calavam e as bombas não explodiam. Sua história e, mais especificamente, a história de sua era inicial de colapso e catástrofe devem começar com a da guerra mundial de 31 anos.

Para os que cresceram antes de 1914, o contraste foi tão impressionante que muitos – inclusive a geração dos pais deste historiador, ou pelo menos de seus membros centro-europeus – se recusaram a ver qualquer continuidade com o passado. “Paz” significava "antes de 1914": depois disso veio algo que não mais merecia esse nome. Era compreensível. Em 1914 não havia grande guerra fazia um século, quer dizer, uma guerra que envolvesse todas as grandes potências, ou mesmo a maioria delas, sendo que os grandes participantes do jogo internacional da época eram as seis grandes potências européias A (Grã-Bretanha, França, Rússia, Áustria-Hungria, Prússia após 1871 ampliada para Alemanha e, depois de unificada, a Itália), os EUA e o Japão. Houvera apenas uma breve guerra em que mais de duas das grandes potências haviam combatido, a Guerra da Criméia (1854-1856), entre a Rússia, de um lado, e a Grã-Bretanha e a França do outro. Além disso, a maioria das guerras envolvendo grandes potências fora rápida. A maior delas não fora um conflito internacional, mas uma Guerra Civil dentro dos EUA (1861-1865). Media-se a extensão da guerra em meses, ou mesmo (como a guerra de 1866 entre a Prússia e a Áustria) semanas. Entre 1871 e 1914 não houvera na Europa guerra alguma em que exércitos de grandes potências cruzassem alguma fronteira hostil, embora no Extremo Oriente o Japão tivesse combatido (e vencido) a Rússia em 1904-1905, apressando com isso a Revolução Russa.

Não houvera, em absoluto, guerras mundiais. No século XVIII a França e a Grã-Bretanha tinham combatido numa série de guerras cujos campos de batalha começavam na Índia, passavam pela Europa e chegavam à América do Norte, cruzando os oceanos do mundo. Entre 1815 e 1914 nenhuma grande potência combateu outra fora de sua região imediata, embora expedições agressivas de potências imperiais ou candidatas a imperiais contra inimigos mais fracos do ultramar fossem, claro, comuns. A maioria dessas expedições resultava em lutas espetacularmente unilaterais, como as guerras dos EUA contra o México (1846-1848) e a Espanha (1898) e as várias campanhas para ampliar os impérios coloniais britânico e francês, embora de vez em quando a escória reagisse, como quando os franceses tiveram de retirar-se do México na década de 1860 e os italianos da Etiópia em 1896. Com os Estados modernos munidos de arsenais cada vez mais cheios de uma tecnologia da morte tremendamente superior, mesmo seus adversários mais formidáveis só podiam esperar, na melhor das hipóteses, um adiamento da retirada inevitável. Esses conflitos exóticos eram material para livros de aventura ou reportagens dos correspondentes de guerra (essa inovação de meados do século XX), mais que assuntos de relevância direta para a maioria dos habitantes dos Estados que os travavam e venciam.

Tudo isso mudou em 1914. A Primeira Guerra Mundial envolveu todas as grandes potências, e na verdade todos os Estados europeus, com exceção da Espanha, os Países Baixos, os três países da Escandinávia e a Suíça. E mais: tropas do ultramar foram, muitas vezes pela primeira vez, enviadas para lutar e operar fora de suas regiões. Canadenses lutaram na França, australianos e neozelandeses forjaram a consciência nacional numa península do Egeu – “Gallipoli” tornou-se seu mito nacional – e, mais importante, os Estados Unidos rejeitaram a advertência de George Washington quanto a “complicações européias” e mandaram seus soldados para lá, determinando assim a forma da história do século XX. Indianos foram enviados para a Europa e o Oriente Médio, batalhões de trabalhadores chineses vieram para o Ocidente, africanos lutaram no exército francês. Embora a ação militar fora da Europa não fosse muito significativa a não ser no Oriente Médio, a guerra naval foi mais uma vez global: a primeira batalha travou-se em 1914, ao largo das ilhas Falkland, e as campanhas decisivas, entre submarinos alemães e comboios aliados, deram-se sobre e sob os mares do Atlântico Norte e Médio.

É quase desnecessário demonstrar que a Segunda Guerra Mundial foi global. Praticamente todos os Estados independentes do mundo se envolveram, quisessem ou não, embora as repúblicas da América Latina só participassem de forma mais nominal. As colônias das potências imperiais não tiveram escolha. Com exceção da futura República da Irlanda e de Suécia, Suíça, Portugal, Turquia e Espanha, na Europa, e talvez do Afeganistão, fora da Europa, quase todo o globo foi beligerante ou ocupado, ou as duas coisas juntas. Quanto aos campos de batalha, os nomes de ilhas melanésias e assentamentos nos desertos norte-africanos, na Birmânia e nas Filipinas, tornaram-se tão conhecidos dos leitores de jornais e radiouvintes – e essa foi essencialmente a guerra dos noticiários radiofônicos – quanto os nomes de batalhas no Ártico e no Cáucaso, na Normandia, em Stalingrado e em Kursk. A Segunda Guerra Mundial foi uma aula de geografia do mundo.

Locais, regionais ou globais, as guerras do século XX iriam dar-se numa escala muito mais vasta do que qualquer coisa experimentada antes. Das 74 guerras internacionais travadas entre 1816 e 1965 que especialistas americanos, amantes desse tipo de coisa, classificaram pelo número de vítimas, as quatro primeiras ocorreram no século XX: as duas guerras mundiais, a guerra do Japão contra a China em 1937-1939, e a Guerra da Coréia. Cada uma delas matou mais de 1 milhão de pessoas em combate. A maior guerra internacional documentada do século 19 pós-napoleônico, entre Prússia-Alemanha e França, em 1870-1871, matou talvez 150 mil pessoas, uma ordem de magnitude mais ou menos comparável às mortes da Guerra do Chaco, de 1932-1935, entre Bolívia (pop. c. 3 milhões) e Paraguai (pop. . 1,4 milhão). Em suma, 1914 inaugura a era do massacre (Singer, 1972, pp. 66 e 131).

Não há espaço neste livro para discutir as origens da Primeira Guerra Mundial, que o autor tentou esboçar em A era dos impérios. Ela começou como uma guerra essencialmente européia, entre a tríplice aliança de França, Grã-Bretanha e Rússia, de um lado, e as chamadas “Potências Centrais”, Alemanha e Áustria-Hungria, do outro, com a Sérvia e a Bélgica sendo imediatamente arrastadas para um dos lados devido ao ataque austríaco (que na verdade detonou a guerra) à primeira e o ataque alemão à segunda (como parte da estratégia de guerra da Alemanha). A Turquia e a Bulgária logo se juntaram às Potências Centrais, enquanto do outro lado a Tríplice Aliança se avolumava numa coalizão bastante grande. Subornada, a Itália também entrou; depois foi a vez da Grécia, da Romênia e (muito mais nominalmente) Portugal também. Mais objetivo, o Japão entrou quase de imediato, a fim de tomar posições alemãs no Oriente Médio e no Pacífico ocidental, mas não se interessou por nada fora de sua região, e – mais importante – os EUA entraram em 1917. Na verdade, sua intervenção seria decisiva.

Os alemães, então como na Segunda Guerra Mundial, viram-se diante de uma possível guerra em duas frentes, inteiramente diferente dos Bálcãs, aos quais haviam sido arrastados por sua aliança com a Áustria-Hungria. Contudo, como três das quatro Potências Centrais ficavam nessa região – a Turquia e a Bulgária, além da Áustria –, ali o problema estratégico não era tão urgente. O plano alemão era liquidar rapidamente a França no Ocidente e depois partir com igual rapidez para liquidar a Rússia no Oriente, antes que o império do czar pudesse pôr em ação efetiva todo o peso de seu enorme potencial militar humano. Então, como depois, movida pela necessidade, a Alemanha planejava uma campanha relâmpago (o que seria, na Segunda Guerra Mundial, chamado de blitzkrieg). O plano quase deu certo, mas não inteiramente. O exército alemão avançou sobre a França, inclusive atravessando a Bélgica, neutra, e só foi detido algumas dezenas de quilômetros a Leste de Paris, junto ao rio Mame, cinco ou seis semanas depois de declarada a guerra. (Em 1940 o plano viria a dar certo.) Em seguida recuou um pouco, e os dois lados os franceses agora complementados pelo que restava dos belgas e por uma força de terra britânica que logo cresceria enormemente improvisaram linhas paralelas de trincheiras e fortificações defensivas, que pouco depois se estendiam sem interrupção da costa do Canal, em Flandres, até a fronteira suíça, deixando grande parte da França oriental e da Bélgica sob ocupação alemã. Nos três anos e meio que se seguiram não houve mudanças significativas de posição.

Essa era a Frente Ocidental, que se tornou uma máquina de massacre provavelmente sem precedentes na história da guerra. Milhões de homens ficavam uns diante dos outros nos parapeitos de trincheiras barricadas com sacos de areia, sob as quais viviam como e com ratos e piolhos. De vez em quando seus generais procuravam romper o impasse. Dias e mesmo semanas de incessante bombardeio de artilharia – que um escritor alemão chamou depois de furacões de aço (Emst Jünger, 1921) – “amaciavam! o inimigo e o mandavam para baixo da terra, até que no momento certo levas de homens saíam por cima do parapeito, geralmente protegido por rolos e teias de arame farpado, para a terra de ninguém, um caos de crateras de granadas inundadas de água, tocos de árvores calcinadas, lama e cadáveres abandonados, e avançavam sobre as metralhadoras, que os ceifavam, como eles sabiam que aconteceria. A tentativa alemã de romper a barreira em Verdun, em 1916 (fevereiro julho), foi uma batalha de 2 milhões de homens, com 1 milhão de baixas. Fracassou. A ofensiva dos britânicos no Somme, destinada a forçar os alemães a suspender a ofensiva de Verdun, custou à Grã-Bretanha 420 mil mortos – 60 mil no primeiro dia de ataque. Não surpreende que na memória dos britânicos e franceses, que travaram a maior parte da Primeira Guerra Mundial na Frente Ocidental, esta tenha permanecido como a “Grande Guerra”, mais terrível e traumática na memória que a Segunda Guerra Mundial. Os franceses perderam mais de 20% de seus homens em idade militar, e se incluirmos os prisioneiros de guerra, os feridos e os permanentemente estropiados e desfigurados – os “gueules casses” (“caras quebradas”) que se tornaram parte tão vivida da imagem posterior da guerra –, não muito mais de um terço dos soldados franceses saiu da guerra incólume. As possibilidades do primeiro milhão de soldados britânicos sobreviver à guerra incólume eram de mais ou menos 50%. Os britânicos perderam uma geração – meio milhão de homens com menos de trinta anos (Winter, 1986, p. 83) –, notadamente entre suas classes altas, cujos rapazes, destinados como gentlemen a ser os oficiais que davam o exemplo, marchavam para a batalha à frente de seus homens e em conseqüência eram ceifados primeiro. Um quarto dos alunos de Oxford e Cambridge com menos de 25 anos que serviam no exército britânico em 1914 (Winter, 1986, p. 98) foi morto. Os alemães, embora contassem ainda mais mortos que os franceses, perderam apenas uma pequena proporção de seus contingentes em idade militar, muito mais numerosos que os franceses: 13% deles. Mesmo as baixas aparentemente modestas dos EUA (116 mil, contra 1,6 milhão de franceses, quase 800 mil britânicos e 1,8 milhão de alemães) na verdade demonstram a natureza assassina da Frente Ocidental, a única onde estes lutaram. Pois embora os EUA perdessem entre 2,5 e 3 vezes mais homens na Segunda Guerra Mundial que na Primeira, em 1917-1918 as forças americanas estiveram em ação por pouco mais de um ano e meio, enquanto na Segunda Guerra Mundial foram três anos e meio e num único setor bastante exíguo, e não no mundo inteiro.

Os horrores da guerra na Frente Ocidental teriam conseqüências ainda mais tristes. Sem dúvida, a própria experiência ajudou a brutalizar tanto a guerra como a política: se uma podia ser feita sem contar os custos humanos ou quaisquer outros, por que não a outra? Quase todos os que serviram na Primeira Guerra Mundial em sua esmagadora maioria soldados rasos saíram dela inimigos convictos da guerra. Contudo, os ex-soldados que haviam passado por aquele tipo de guerra sem se voltarem contra ela às vezes extraíam da experiência partilhada de viver com a morte e a coragem um sentimento de incomunicável e bárbara superioridade inclusive em relação a mulheres e não combatentes que viria a formar as primeiras fileiras da ultradireita do pós-guerra. Adolf Hitler era apenas um desses homens para quem o fato de ter sido frontsoldat era a experiência formativa da vida. Contudo, a reação oposta teve conseqüências igualmente negativas. Após a guerra, tornou-se bastante evidente para os políticos, pelo menos nos países democráticos, que os banhos de sangue de 1914-1918 não seriam mais tolerados pelos eleitores. A estratégia pós-l9l8 da Grã-Bretanha e da França, tal como a estratégia pós-Vietnã nos EUA, baseava-se nessa crença. A curto prazo, isso ajudou os alemães a ganhar a Segunda Guerra Mundial no Ocidente em 1940, contra uma França empenhada em agachar-se por trás de suas fortificações incompletas e, uma vez rompidas estas, simplesmente não querendo continuar a luta; e uma Grã-Bretanha desesperada por evitar meter-se no tipo de guerra terrestre maciça que dizimara seu povo em 1914-1918. A longo prazo, os governos democráticos não resistiram à tentação de salvar as vidas de seus cidadãos, tratando as dos países inimigos como totalmente descartáveis. O lançamento da bomba atômica sobre Hiroxima e Nagasaki em 1945 não foi justificado como indispensável para a vitória, então absolutamente certa, mas como um meio de salvar vidas de soldados americanos. É possível, no entanto, que a idéia de que isso viesse a impedir a URSS, aliada dos EUA, de reivindica uma participação

preponderante na derrota do Japão tampouco estivesse ausente das cabeças do governo americano.

Enquanto a Frente Ocidental permanecia num impasse sangrento, a Frente Oriental continuava em movimento. Os alemães pulverizaram uma canhestra força de invasão russa na batalha de Tannenberg, no primeiro mês da guerra, e depois, com a ajuda por vezes efetiva dos austríacos, empurraram a Rússia para fora da Polônia. Apesar de ocasionais contra-ofensivas russas, ficou claro que as Potências Centrais tinham o domínio e que a Rússia travava uma ação defensiva de retaguarda contra o avanço alemão. Nos Bálcãs, as Potências Centrais tinham o controle, apesar do desempenho militar irregular do pétreo império habsburgo. Os beligerantes locais, Sérvia e Romênia, a propósito, sofreram de longe as maiores perdas militares. Os aliados, apesar de ocuparem a Grécia, não fizeram progresso até o colapso das Potências Centrais, após o verão de 1918. O plano da Itália de abrir outra frente contra a Áustria-Hungria nos Alpes falhou, sobretudo porque muitos soldados italianos não viam motivo para lutar pelo governo de um Estado que não consideravam seu e cuja língua poucos sabiam falar. Após uma grande débâcle militar em Caporetto em 1917, que deixou uma memória literária no romance Adeus às armas, de Ernest Hemingway, os italianos tiveram mesmo de ser reforçados por transferências de outros exércitos aliados. Enquanto isso, França, Grã-Bretanha e Alemanha sangravam até a morte na Frente Ocidental, a Rússia se via cada vez mais desestabilizada pela guerra que estava perdendo a olhos vistos, e o império austro-húngaro cambaleava para o desmoronamento, desejado por seus movimentos nacionalistas locais, e ao qual os ministros das Relações Exteriores aliados se resignavam sem

entusiasmo, prevendo com razão uma Europa instável.

Como romper o impasse na Frente Ocidental? Esse era o problema crucial para os dois lados, pois sem vitória no Ocidente nenhum dos dois podia vencer a guerra, ainda mais porque a guerra naval também estava empatada. A não ser por uns poucos ataques ocasionais, os aliados controlavam os oceanos, mas as frotas de combate britânicas e alemãs enfrentavam-se e imobilizavam uma à outra no mar do Norte. A única tentativa de entrar em combate (1916) terminou indefinida, mas, visto que confinou a frota alemã às suas bases, no balanço geral foi vantajosa para os aliados.

Os dois lados tentaram vencer pela tecnologia. Os alemães sempre fortes em química levaram o gás venenoso ao campo de batalha, onde ele se revelou ao mesmo tempo bárbaro e ineficaz, ocasionando o único caso autêntico de repulsa humanitária governamental a um meio de fazer a guerra, a Convenção de Genebra de 1925, pela qual o mundo se comprometia a não usar guerra química. E de fato, embora todos os governos continuassem a preparar se para ela e esperassem que o inimigo a usasse, ela não foi usada por nenhum dos lados na Segunda Guerra Mundial, se bem que os sentimentos humanitários não impedissem os italianos de lançar gás sobre os povos coloniais. O acentuado declínio dos valores da civilização após a Segunda Guerra Mundial acabou trazendo o gás venenoso de volta. Durante a Guerra Irã-Iraque, na década de 1980, o Iraque, então apoiado entusiasticamente pelos Estados ocidentais, usou-o à vontade contra soldados e civis. Os britânicos foram pioneiros nos veículos blindados de esteira, ainda conhecidos pelo então codinome de tanques, mas seus generais, não muito brilhantes, ainda não haviam descoberto como usa-los. Ambos os lados usaram os novos e ainda frágeis aeroplanos, além de (a Alemanha) curiosas aeronaves em forma de charuto e cheias de hélio, fazendo experiências de bombardeio aéreo, por sorte sem grande eficácia. A guerra aérea também atingiu a maioridade na Segunda Guerra Mundial, notadamente como um meio de aterrorizar civis.

A única arma tecnológica que teve um efeito importante na guerra em 1914-1918 foi o submarino, pois os dois lados, incapazes de derrotar os soldados um do outro, decidiram matar de fome os civis do adversário. Como todos os suprimentos da Grã-Bretanha eram transportados por mar, parecia factível estrangular as ilhas britânicas mediante uma guerra submarina cada vez mais implacável contra os navios. A campanha chegou perto do êxito em 1917, antes que se descobrissem meios efetivos de conte-la, mas fez mais que qualquer outra coisa para arrastar os EUA à guerra. Os britânicos, por sua vez, fizeram o melhor possível para bloquear os suprimentos da Alemanha, ou seja, matar de fome a economia e a população alemãs. Foram mais eficazes do que deviam, pois, como veremos, a economia de guerra alemã não era dirigida com a eficiência e racionalidade de que se gabavam os alemães diferentemente da máquina militar alemã, que, tanto na Primeira como na Segunda Guerra Mundial, era impressionantemente superior a qualquer outra. A mera superioridade do exército alemão enquanto força militar poderia ter-se mostrado decisiva se a partir de 1917 os aliados não tivessem podido valer-se dos recursos praticamente ilimitados dos EUA. Na verdade, a Alemanha, mesmo entravada pela aliança com a Áustria, assegurou a vitória total no Leste, expulsando a Rússia da guerra para a revolução e para fora de grande parte de seus territórios europeus em 1917-1918. Pouco depois de impor a paz punitiva de Brest-Litowsk (março de 1918), o exército alemão, agora livre para concentrar-se no Ocidente, na verdade rompeu a Frente Ocidental e avançou de novo sobre Paris. Graças à inundação de reforços e equipamentos americanos os aliados se recuperaram, mas por um instante pareceu por um triz. Contudo, era o último lance de uma Alemanha exausta, que se sabia perto da derrota. Assim que os aliados começaram a avançar, no verão de 1918, o fim era apenas uma questão de semanas. As Potências Centrais não apenas admitiram a derrota, mas desmoronaram. A revolução varreu o Sudeste e o Centro da Europa no outono de 1918, como varrera a Rússia em 1917 (ver o próximo capítulo). Nenhum dos velhos governos ficou de pé entre as fronteiras da França e o mar do Japão. Mesmo os beligerantes do lado vitorioso ficaram abalados, embora seja difícil acreditar que Grã-Bretanha e França não sobrevivessem inclusive à derrota como entidades políticas estáveis; a Itália não, contudo. Certamente nenhum dos países derrotados escapou da revolução.

Se um dos grandes ministros ou diplomatas do passado aqueles a quem os membros aspirantes dos ministérios do Exterior de seus países ainda eram instruídos a tomar como modelos, um Tayllerand ou um Bismarck se levantasse da cova para observar a Primeira Guerra Mundial, certamente se perguntaria por que estadistas sensatos não tinham decidido resolver a guerra por meio de algum acordo, antes que ela destruísse o mundo de 1914. É o que também nós devemos perguntar-nos. A maioria das guerras não revolucionárias e não ideológicas do passado não se travara sob a forma de lutas de morte ou que prosseguissem até a exaustão total. Em 1914, certamente não era a ideologia que dividia os beligerantes, exceto no fato de que nos dois lados a guerra tinha de ser travada mediante a mobilização da opinião pública, isto é, alegando algum profundo desafio a valores nacionais aceitos, como o barbarismo russo contra a cultura alemã; a democracia francesa e britânica contra o absolutismo alemão, ou coisas assim. Além disso, houve estadistas que recomendaram algum tipo de acordo de compromisso mesmo fora da Rússia e da Áustria-Hungria, que pressionavam seus aliados nesse sentido com crescente desespero, à medida que a derrota se aproximava. Por que, então, a Primeira Guerra Mundial foi travada pelas principais potências dos dois lados como um tudo ou nada, ou seja, como uma guerra que só podia ser vencida por inteiro ou perdida por inteiro?

O motivo era que essa guerra, ao contrário das anteriores, tipicamente travadas em torno de objetivos específicos e limitados, travava-se por metas ilimitadas. Na Era dos Impérios a política e a economia se haviam fundido. A rivalidade política internacional se modelava no crescimento e competição econômicos, mas o traço característico disso era precisamente não ter limites. “As ‘fronteiras naturais’ da Standard Oil, do Deutsche Bank ou da De Beers Diamond Corporation estavam no fim do universo, ou melhor, nos limites de sua capacidade de expansão” (Hobsbawm, 1987, p. 318). Mais concretamente, para os dois principais oponentes, Alemanha e Grã-Bretanha, o céu tinha de ser o limite, pois a Alemanha queria uma política e posição marítima globais como as que então ocupava a Grã-Bretanha, com o conseqüente relegamento de uma já declinante Grã-Bretanha a um status inferior. Era uma questão de ou uma ou outra. Para a França, então e depois, os objetivos em jogo eram menos globais, mas igualmente urgentes: compensar sua crescente e aparentemente inevitável inferioridade demográfica e econômica frente à Alemanha. Também aqui a questão era o futuro da França como grande potência. Nos dois casos, o acordo teria significado apenas adiamento. A própria Alemanha, seria de supor, podia esperar até que seu tamanho e superioridade crescentes estabelecessem a posição que os governantes alemães achavam ser direito de seu país, o que aconteceria mais cedo ou mais tarde. Na verdade, a posição dominante de uma Alemanha duas vezes derrotada e sem pretensões a potência militar na Europa era mais inconteste no início da década de 1990 do que as pretensões da Alemanha militarista jamais haviam sido antes de 1945. Contudo, isso se deve ao fato de Grã-Bretanha e França, terem sido forçadas, após a Segunda Guerra Mundial, embora com relutância, a aceitar sua relegação a um status de segunda categoria, assim como a Alemanha Federal, com toda a sua força econômica, reconheceu que no pós 1945 a supremacia mundial como Estado individual estava, e teria de continuar, fora de seu poder. Na década de 1900, no auge da era imperial e imperialista, tanto a pretensão alemã a um status global único ("O espírito alemão regenerará o mundo”, diziam) quanto a resistência a isso de Grã-Bretanha e França, ainda inegáveis “grandes potências” num mundo eurocentrado, continuavam intactas. No papel, sem dúvida era possível o acordo neste ou naquele ponto dos quase megalomaníacos “objetivos de guerra" que os dois lados formularam assim que a guerra estourou, mas na prática só um objetivo contava naquela guerra: a vitória total, aquilo que na Segunda Guerra Mundial veio a chamar-se “rendição incondicional”.

Era um objetivo absurdo, que trazia em si a derrota e que arruinou vencedores e vencidos; que empurrou os derrotados para a revolução e os vencedores para a bancarrota e a exaustão física. Em 1940 a França foi atropelada com ridícula facilidade e rapidez por forças alemãs inferiores e aceitou sem hesitação a subordinação a Hitler porque o país havia sangrado até quase a morte em 1914 a 18. A Grã-Bretanha jamais voltou a ser a mesma após 1918, porque o país arruinara sua economia travando uma guerra que ia muito além de seus recursos. Além disso, a vitória total, ratificada por uma paz punitiva, imposta, arruinou as escassas possibilidades existentes de restaurar alguma coisa que guardasse mesmo fraca semelhança com uma Europa estável, liberal, burguesa, como reconheceu de imediato o economista John Maynard Keynes. Se a Alemanha não fosse reintegrada na economia européia, isto é, se não se reconhecesse e aceitasse o peso econômico do país dentro dessa economia, não poderia haver estabilidade. Mas essa era a última consideração na mente dos que tinham lutado para eliminar a Alemanha.

O acordo de paz imposto pelas grandes potências vitoriosas sobreviventes (EUA, Grã-Bretanha, França, Itália) e em geral, embora imprecisamente, conhecido como Tratado de Versalhes[1], era dominado por cinco considerações. A mais imediata era o colapso de tantos regimes na Europa e o surgimento na Rússia de um regime bolchevique revolucionário alternativo, dedicado à subversão universal, um ímã para forças revolucionárias de todas as partes (ver capítulo 2). Segundo, havia a necessidade de controlar a Alemanha, que afinal quase tinha derrotado sozinha toda a coalizão aliada. Por motivos óbvios, esse era, e continuou sendo desde então, o maior interesse da França. Terceiro, o mapa da Europa tinha de ser redividido e retraçado, tanto para enfraquecer a Alemanha quanto para preencher os grandes espaços vazios deixados na Europa e no Oriente Médio pela derrota e colapso simultâneos dos impérios russo, habsburgo e otomano. Os muitos pretendentes à sucessão, pelo menos na Europa, eram vários movimentos nacionalistas que os vitoriosos tendiam a estimular, contanto que fossem antibolcheviques como convinha. Na verdade, na Europa o princípio básico de reordenação do mapa era criar Estados-nação étnico-lingüísticos, segundo a crença de que as nações tinham o "direito de autodeterminação”. O presidente Wilson, dos EUA, cujas opiniões eram tidas como expressando as da potência sem a qual a guerra teria sido perdida, estava empenhado a fundo nessa crença, que era (e é) defendida com mais facilidade por quem está distante das realidades étnicas e lingüísticas das regiões que seriam divididas em Estados-nação. A tentativa foi um desastre, como ainda se pode ver na Europa da década de 1990. Os conflitos nacionais que despedaçam o continente na década de 1990 são as galinhas velhas do Tratado de Versalhes voltando mais uma vez para o choco[2]. O remapeamento do Oriente Médio se deu ao longo de linhas imperialistas divisão entre Grã-Bretanha e França com exceção da Palestina, onde o governo britânico, ansioso por apoio internacional judeu durante a guerra, tinha, de maneira incauta e ambígua, prometido estabelecer um lar nacional para os judeus. Essa seria outra relíquia problemática e não esquecida da Primeira Guerra Mundial. O quarto conjunto de considerações eram as políticas internas dentro dos países vitoriosos o que significava, na prática, Grã-Bretanha, França e EUA e os atritos entre eles. A conseqüência mais importante dessa politicagem interna foi que o Congresso americano se recusou a ratificar um acordo de paz escrito em grande parte por ou para seu presidente, e os EUA por conseguinte se retiraram dele, com resultados de longo alcance. Por fim, as potências vitoriosas buscaram desesperadamente o tipo de acordo de paz que tornasse impossível outra guerra como a que acabara de devastar o mundo e cujos efeitos retardados estavam em toda parte. Fracassaram da forma mais espetacular. Vinte anos depois, o mundo estava de novo em guerra.

Tornar o mundo seguro contra o bolchevismo e remapear a Europa eram metas que se sobrepunham, pois a maneira mais imediata de tratar com a Rússia revolucionária, se por acaso ela viesse a sobreviver – o que não parecia de modo algum certo em 1919 – era isolá-la atrás de um “cinturão de quarentena” (cordon sanitaire, na linguagem da diplomacia contemporânea) de Estados anticomunistas. Como os territórios desses Estados haviam sido em grande parte ou inteiramente secionados de ex-terras russas, sua hostilidade para com Moscou podia ser dada como certa. Do Norte para o Sul, eram eles: Finlândia, uma região autônoma que Lenin deixara separar-se; três novas pequenas repúblicas bálticas (Estônia, Letônia e Lituânia), para as quais não havia precedente histórico; Polônia, devolvida à condição de Estado após 120 anos; e uma Romênia muitíssimo ampliada, com o tamanho duplicado por cessões das partes húngara e austríaca do império habsburgo e da ex-russa Bessarábia. A maioria desses Estados na verdade fora destacada da Rússia pela Alemanha e, não fosse pela Revolução Bolchevique, certamente teria sido devolvida àquele Estado. A tentativa de ir adiante com esse cinturão de isolamento no Cáucaso fracassou, antes de mais nada, porque a Rússia revolucionária chegou a um acordo com a Turquia, não comunista mas revolucionária, e que não tinha simpatia pelos imperialistas britânicos e franceses. Daí os Estados da Armênia e Geórgia, independentes durante um curto período, estabelecidos após Brest-Litowsk, e as tentativas conduzidas pelos britânicos de separar o Azerbaijão, onde há muito petróleo, não sobreviverem à vitória dos bolcheviques na Guerra Civil de 1918-1920 e ao tratado soviético-turco de 1921. Em suma, no Leste os aliados aceitaram as fronteiras impostas pela Alemanha à Rússia revolucionária, na medida em que essas fronteiras não eram tornadas inoperantes por forças que os aliados não pudessem controlar.

Isso ainda deixava grandes regiões, sobretudo da antiga Europa austro-húngara, para serem remapeadas. A Áustria e a Hungria foram reduzidas a retaguardas alemã e magiar, a Sérvia foi expandida para uma grande e nova Iugoslávia pela fusão com a (ex-austríaca) Eslovênia e a (ex-húngara) Croácia, e também com o antes independente pequeno reino tribal de pastores e assaltantes, Montenegro, uma sombria massa de montanhas cujos habitantes reagiram à perda sem precedentes de sua soberania convertendo-se em massa ao comunismo, que, achavam, apreciava a virtude heróica. Estavam também ligados à Rússia ortodoxa, cuja fé os ainda não conquistados homens da montanha negra tinham defendido contra os infiéis turcos durante tantos séculos. Também se formou uma nova Tchecoslováquia, juntando-se o miolo industrial do império habsburgo, as terras tchecas, às áreas de camponeses eslovacos e rutênios antes pertencentes à Hungria. A Romênia foi ampliada para um conglomerado multinacional, enquanto a Polônia e a Itália também se beneficiavam. Não havia um único precedente histórico assim como não havia lógica nas combinações iugoslavas e tchecoslovacas, meras construções de uma ideologia nacionalista que acreditava na força da etnicidade e na indesejabilidade de Estados-nação pequenos demais. Todos os eslavos do Sul (= iugoslavos) pertenciam a um Estado, assim como os eslavos do norte das terras tchecas e eslovacas. Como se poderia esperar, esses casamentos sob mira de espingarda não se mostraram muito firmes. A propósito, com exceção das remanescentes Áustria e Hungria, privadas da maioria mas na prática não inteiramente todas de suas minorias, os novos Estados sucessores, tirados da Rússia ou do império habsburgo, não eram menos multinacionais que seus antecessores.

Impôs-se à Alemanha uma paz punitiva, justificada pelo argumento de que o Estado era o único responsável pela guerra e todas as suas conseqüências (a cláusula da culpa de guerra), para mantê-la permanentemente enfraquecida. Isso foi conseguido não tanto por perdas territoriais, embora a Alsácia-Lorena voltasse à França e uma substancial região no Leste à Polônia restaurada (o “Corredor Polonês”, que separava a Prússia oriental do resto da Alemanha), além de alguns ajustes menores nas fronteiras alemãs; essa paz punitiva foi, na realidade, assegurada privando-se a Alemanha de uma marinha e uma força aérea efetivas; limitando-se seu exército a 100 mil homens; impondo-se “reparações” (pagamentos dos custos da guerra incorridos pelos vitoriosos) teoricamente infinitas; pela ocupação militar de parte da Alemanha Ocidental; e, não menos, privando-se a Alemanha de todas as suas antigas colônias no ultramar. (Elas foram redistribuídas entre os britânicos e seus domínios, os franceses, e em menor extensão aos japoneses, mas, em deferência à crescente impopularidade do imperialismo, não mais foram chamadas de “colônias”, e sim de “mandatos” para assegurar o progresso de povos atrasados, entregues humanitariamente às potências imperiais, que nem sonhariam em explorá-los para nenhum outro propósito). Com exceção das cláusulas territoriais, nada restava do Tratado de Versalhes em meados da década de 1930.

Quanto ao mecanismo para impedir outra guerra mundial, era evidente que desmoronara absolutamente o consórcio de grandes potências européias que se supunha assegura-lo antes de 1914. A alternativa, exortada a obstinados politiqueiros europeus pelo presidente Wilson, com todo o fervor liberal de um cientista político de Princeton, era estabelecer uma Liga de Nações (isto é, Estados independentes) que tudo abrangesse, e que solucionasse pacífica e democraticamente os problemas antes que se descontrolassem, de preferência em negociação pública ("alianças abertas feitas abertamente"), pois a guerra também tornara suspeitos, como diplomacia secreta, os habituais e sensíveis processos de negociação internacional. Foi em grande parte uma reação contra os tratados secretos acertados entre os aliados durante a guerra, nos quais dividiram a Europa do pós-guerra e o Oriente Médio com uma surpreendente falta de atenção pelos desejos, ou mesmo interesses, dos habitantes daquelas regiões. Os bolcheviques, descobrindo esses documentos sensíveis nos arquivos czaristas, haviam-nos prontamente publicado para o mundo ler, e portanto exigia-se um exercício de redução de danos. A Liga das Nações foi de fato estabelecida como parte do acordo de paz e revelou-se um quase total fracasso, a não ser como uma instituição para coleta de estatísticas. Contudo, em seus primeiros dias resolveu uma o duas disputas menores, que não punham a paz mundial em grande risco, como a da Finlândia e Suécia sobre as ilhas Âland[3]. A recusa dos EUA a juntar-se à Liga das Nações privou-a de qualquer significado real.

Não é necessário entrar em detalhes da história do entre-guerras para ver que o acordo de Versalhes não podia ser a base de uma paz estável. Estava condenado desde o início, e portanto outra guerra era praticamente certa. Como já observamos, os EUA quase imediatamente se retiraram, e num mundo não mais eurocentrado e eurodeterminado, nenhum acordo não endossado pelo que era agora uma grande potência mundial podia se sustentar. Como veremos, isso se aplicava tanto às questões econômicas do mundo quanto à sua política. Duas grandes potências européias, e na verdade mundiais, estavam temporariamente não apenas eliminadas do jogo internacional, mas tidas como não existindo como jogadores independentes a Alemanha e a Rússia soviética. Assim que uma ou as duas reentrassem em cena, um acordo de paz baseado apenas na Grã-Bretanha e na França pois a Itália também continuava insatisfeita não poderia durar. E, mais cedo ou mais tarde, a Alemanha ou a Rússia, ou as duas, reapareceriam inevitavelmente como grandes jogadores.

Qualquer pequena chance que tivesse a paz foi torpedeada pela recusa das potências vitoriosas a reintegrar as vencidas. E verdade que a repressão total da Alemanha e a total proscrição da Rússia soviética logo se revelaram impossíveis, mas a adaptação à realidade foi lenta e relutante. Os franceses, em particular, só de má vontade abandonaram a esperança de manter a Alemanha fraca e impotente. (Os britânicos não eram obcecados pela lembrança da derrota e da invasão.) Quanto à URSS, os Estados vencedores teriam preferido que não existisse, e, tendo apoiado os exércitos da contra-revolução na Guerra Civil russa e enviado forças militares para apoiá-los, não mostravam entusiasmo algum pelo reconhecimento dessa sobrevivência. Seus homens de negócios chegaram mesmo a descartar as ofertas das maiores concessões a investidores estrangeiros feitas por Lenin, desesperado por qualquer forma de reiniciar a economia quase destruída pela guerra, a revolução e a guerra civil. A Rússia soviética foi obrigada a desenvolver-se no isolamento, embora para fins políticos os dois Estados proscritos da Europa, a Rússia soviética e a Alemanha, se juntassem no início da década de 1920. Talvez a guerra seguinte pudesse ter sido evitada, ou pelo menos adiada, se houvesse restaurado a economia pré-guerra como um sistema global de prósperos crescimento e expansão econômicos. Contudo, após uns poucos anos, em meados da década de 1920, nos quais se pareceu ter deixado para trás a guerra e a perturbação pós-guerra, a economia mundial mergulhou na maior e mais dramática crise que conhecera desde a Revolução Industrial. E isso levou ao poder, na Alemanha e no Japão, as forças políticas do militarismo e da extrema direita, empenhadas num rompimento deliberado com o status quo mais pelo confronto, se necessário militar, do que pela mudança negociada aos poucos. Daí em diante, uma nova guerra mundial era não apenas previsível, mas rotineiramente prevista. Os que atingiram a idade adulta na década de 1930 a esperavam. A imagem de frotas de aviões jogando bombas sobre cidades, e de figuras de pesadelo com máscaras contra gases, tateando o caminho como cegos em meio à nuvem de gás venenoso, perseguiu minha geração: profeticamente num caso, erroneamente no outro.



[1] Tecnicamente, o Tratado de Versalhes só se refere à paz com a Alemanha. Vários parques e castelos reais nas vizinhanças de Paris deram seus nomes aos outros tratados: Saint-Germain com a Áustria; Trianon com a Hungria; Sêvres com a Turquia; Neuilly com a Bulgária.

 

[2] A guerra civil iugoslava, a agitação secessionista na Eslováquia, a secessão dos Estados bálticos da antiga LRSS, os conflitos entre húngaros e romenos pela Transilvânia, o separatismo da Moldova (Moldávia, ex-Bessarábia) e, na realidade, o nacionalismo transcaucasiano, sao alguns dos problemas explosivos que não existiam ou não teriam como existir antes de 1914.

 

[3] As ilhas Âland. situadas entre a Finlândia e a Suécia, e fazendo parte da Finlândia, eram e são habitadas exclusivamente por uma população de língua sueca, enquanto a recém independente Finlândia eslava agressivamente empenhada no predomínio da língua finlandesa. Como alternativa à secessão para a Suécia vizinha, a Liga idealizou um plano que assegurava o uso exclusivo do sueco nas ilhas, e as protegia de indesejada imigração da Finlândia continental. (N. A.)